
Caminho pela vida e percebo que montanhas sempre sobem a nossa frente e nos cabe determinar a exatidão de sua altura. Manter-se no alto dela não é algo difícil quando se tem vontade, mas que só acontece quando ela também quer. De vez, aquilo se torna maior do que entendemos e nos faz distar cada vez mais do chão. A desconfiança de não saber sair de tamanha altitude faz com que resolvamos partir. Mas partir pra onde? Ainda não aprendemos a escolher nosso caminhos.
Sem sequer perceber, começamos a caminhar em frente, tentando não nos importar com o medo do que estará abaixo de nós nos próximos metros percorridos. É bem verdade que o que estará ali é o ar, vazio e pronto pra servir como túnel de escorregamento até o distante chão para quem não sabe voar. Ainda não aprendemos a magia dos acontecimentos.
Esta mágica surpreende-nos e faz com que sejamos capazes de não entrar neste túnel. Como um pássaro, voamos. Descemos daquele lugar e batemos asas, na partida para encontrar novas montanhas. Elas nunca foram tão desejadas. E nessa busca incessante, mantemos a cabeça fixada em algo cujas características se aproximem de onde acabamos de estar. Ainda não aprendemos a encontrar o diferente.
Enquanto buscamos o que agora nos satisfaz, observamos em volta os outros pássaros contentes em sua busca. Alguns já encontram o monte ideal rapidamente e nos fazem sentir incapazes. Ainda não aprendemos dar tempo ao tempo. Tudo parece belo visto de cima, as florestas que ali habitam insistem em cantar a bela melodia da insegurança. A música é sonífera, e quase nos faz desistir. A teimosia em partir daquela montanha voando para baixo torna a canção cada vez mais alta e envolvente. Ainda não aprendemos que não devemos voar para baixo.
Mais adiante, encontramos o que talvez estávamos procurando. E retornamos àquela mágica dos acontecimentos: não somos nós que analisamos e escolhemos, é o simples acaso que faz surgir novos caminhos. Outras montanhas sobem, e desta vez somos incapazes de determinar sua altura. Não pousamos na esverdeada e atraente costa que nos chama lá em cima. Acabamos por bater na rochosa subida do que nos espera. Dói a dor de ter se deparado tão surpreendentemente com aquilo e impera a vontade de saber o que tem mais pra cima. Ainda não aprendemos que o espinho que nos fere na subida é uma amostra da espada que nos ferirá quando chegarmos lá no alto.
Cego é aquele que não consegue enxergar. Não porque não consegue formular uma imagem, e sim por não ser capaz de reconhecer a luz. A falta de luz é o breu. É justamente esta escuridão que anda me seguindo. Eu não falo sobre o físico, material; meu ponto é mais além. A luz que retrato pode ser chamada de razão. E sua ausência não nos traz paz. Há quem diga que as emoções são a melhor parte da vida. Discordo. Emoções são o que movem nossa alma, pra cima ou pra baixo – a altura independe. Mesmo quando para o alto, não se há de enganar. Emoções são montanhas russas. E quanto mais elas nos levam pra cima, mais rápida e dolorosa é a queda.
Quem nunca teve de tapar os olhos ao acordar, com a claridade invadindo furiosamente as pupilas? Fazemo-lo justamente para não ficarmos cegos. Daí entende-se: o excesso de luz também causa cegueira. Nós costumamos confundir racional com ancestral. Ser racional é pescar uma brecha de mentalidade sã, em meio ao mar de sentimentos dos quais somos feitos. Pensante e consciente. Ser ancestral é buscar incessantemente uma razão para tudo, às vezes em regime monárquico para com qualquer ato. Ancestralidade é o excesso da racionalidade. Faço questão de recordar: o excesso de luz causa cegueira. Tudo tem uma razão, é verdade. Mas cabeças não são planetas, onde se cabe exatamente tudo que se é conhecido. Mais vale usar o cérebro antes de agir e não depois, na tentativa de resgatar o que se fez errado. Se gastarmos nosso tempo perguntando sobre cada meteoro que atinge todos os planetas do nosso sistema, quanto tempo nos restará para de fato viver?
Ser racional é a única forma de nos levar a ser racional, ausente a redundância. Primeiramente me refiro à simples ação de pensar; posterior, à de usar a verdadeira frieza da falta das emoções. Não vemos a luz, e nos fechamos para o interior. E cá um segredo: a companhia da solidão não nos leva muito longe, ela é frágil e se desmonta no primeiro buraco encontrado pelo caminho. Vemos muita luz, que nos cegam. Quando cegos, da mesma forma, prendemo-nos em nós mesmos.
Neste paradoxo da prisão, consciente ou não, só nos resta saber dosar a luz para que seja suficientemente agradável aos nossos olhos.

Saio do banho. Sinto como se toda aquela água que acabou de cair sobre mim tivesse um nome, culpa. Sinto como se o xampu também tivesse um nome, superação. É uma pena eu não ter lavado meu cabelo hoje. Hoje, por sinal, foi o último dia em que eu tive alguém para relacionar à perfeição. Libertação da hipocrisia. A toalha com que me secava invejou e tomou o lugar das minhas emoções: cada vez que eu sentia o algodão roçar minha pele e mudar de lado em meu corpo, ele parecia ter outra textura e originava diferentes pensamentos. Ponto e vírgula. Todos estes momentos pareciam cheios de felicidade, exceto pelo último: eu acabava de não ter mais aquela a quem eu chamava de perfeita. Termino de secar-me. Procuro um espelho para admirar a bela roupa que vou colocar. A única forma de convencer meu ego a sair do chão e planar. Falha tentativa.
Lembro-me daquela face angelical a qual eu nunca imaginei capaz de gerar sofrimento. As aparências enganam. Plenitude de desilusão. Ainda custo a acreditar em todas aquelas palavras que ouvi sair de sua boca. Sentimentos tão cheios de si, ou melhor, a falta deles. Mentiras, traições e orgulho, sua novela havia chegado ao fim. Sim, eu te culpo, por tudo. Julgo-te indiferente e sem caráter, afinal não há quem te conheça melhor do que eu.
- “Insensível! Desleal!”
Penso que gritar me libertará disto. Não mais estou só, ela acabou de adentrar meu quarto. Para e olha pra mim, eu finjo que não a vejo, ou realmente não a vejo.
- “Intransigente! Cruel! Egoísta!”
Eu realmente não a tinha visto. Ela sai correndo, vitimando-se. Acordo em um estalo. Corro atrás. Alcanço-a no breu da escadaria. Mesmo sem poder ver seu rosto, percebo-a soluçando e tremendo como num abalo sísmico. Intitula-me com a mesma insensibilidade que eu há pouco o fiz. Peço-lhe desculpas e abraço-a. Eu não me dirigia a ela. É que ela chegou e postou-se bem na frente daquele espelho.
De repente tudo ficou preto. Eu não respirava, eu não conseguia me mover. Não fui eu que fiz aquilo, foi você que me obrigou. Como eu poderia agora viver sem poder te abraçar, sem poder te tocar? Logo eu, que fiz de tudo pra suprir suas necessidades: se um dia foi feliz, fui eu que o fiz; se um dia se orgulhou, foi de mim; se um dia sorriu, foi pra mim; se um dia...ah, não vale mais a pena dizer.
Eu só queria que você soubesse que eu nunca me acostumei a viver sem você. Todos os nossos momentos ficaram marcados em uma memória que se enchia de desesperança e tristeza. Eu te amava irrevogavelmente por você nunca ter feito por onde. Eu não me culpava por nunca ter agido de uma forma que não fosse me trancar no quarto, chorar e perder meu tempo. Eu perdi a minha vida naquele lugar. Tantas vezes eu podia sair e me divertir, mas, ao invés disso, preferi permanecer trancado no mundo da dependência. Você foi uma droga! Em todos os sentidos possíveis, a pior com a qual já me deparei, mas todos nós sabemos que as piores drogas são as que mais viciam.
E agora, mais do que nunca, arrependo-me de ter estado neste quarto. Dei-te a minha vida, literalmente. Mas por que deixei de aproveitar tudo que eu poderia? Destino? Talvez. E ele a cada dia nos surpreende ainda mais. No auge da minha ingênua ignorância, eu pensava que já havia deixado tudo pra trás e não tinha mais pra que existir, nem me arrepender. Levantei da cama, passos curtos e frios. Cheguei à janela. As mãos trêmulas e as lágrimas nos olhos. O vento tocou suavemente meu rosto, e o secou. Um movimento brusco e não havia volta. Eu agi. Lá embaixo, pessoas andavam e carros buzinavam. Tudo parecia tão normal, exceto por mim mesmo. O chão aproxima-se cada vez mais rápido. Droga, a gravidade! Deixo fluir e aproveito o único momento da minha vida em que eu pude voar. E o último, por sinal. De repente tudo ficou preto. Eu não respirava, eu não conseguia me mover. Não fui eu que fiz aquilo, foi você que me obrigou.

Começa uma nova vida, uma nova velha vida. Não me iludo, é apenas um jeito diferente de enxergar o que nunca mudou. As pessoas são outras, mas a história permanece intacta. Uma nova melodia para a mesma música de sempre. Seu título, paixão. Retifico-me, é ilusão. Parece ser a melhor canção que já ouvi. De fato é, só que com prazo de validade. No fundo eu sei que um dia esta música vai parar.
Enquanto ela ainda toca, vivo como se nunca fosse acabar. Não consigo mais passar um minuto sequer sem cantar sua letra. É a combinação perfeita dos melhore sons. Ouço-te sussurrá-la em meus ouvidos. Paraíso infernal. Cada palavra me lembra tua voz, cada rima arranca-me sorrisos. Sinceros. Ingênuos.
O tempo. O envolvimento. A mudança. Tua canção não é mais a mesma. Seu ritmo aumenta e torna-se cada vez mais provocante. Aquela combinação harmônica de meros instrumentos não existe mais. Agora é uma inteira orquestra. Quem a toca, fá-la com tamanho dom que a torna natural. O natural que penetra teus tímpanos e atinge teu cérebro. É capaz de roubar-te de ti mesmo. Um crime perfeito. Até seria se eu não soubesse que crimes perfeitos não existem. Uma falha em meio àquele (quase) eterno espetáculo. O maestro foge. Corre para longe daquele teatro. Sou mais rápido que a orquestra. Da velocidade de meus passos, não me arrependo. Noto-me um maestro vidente. Eu sabia. Sempre soube que um dia a música iria parar.